Um dos conceitos predominantes da filosofia grega clássica se referia ao dualismo entre matéria e espírito. Dentro desta compreensão da superioridade do espiritual, a matéria é má. Este dualismo influenciou até mesmo determinado grupo dentro da história do Cristianismo, denominado de Gnóstico, quanto à sua compreensão da Criação divina e da Encarnação de Jesus Cristo. No entanto, a fé cristã sustenta que tudo o que existe tem Deus como autor, que não somente cria algo externo a Si mesmo (Ele não se confunde com a matéria, nem é a matéria mera extensão Sua), como também preserva por meio do Seu poder. A preservação é compreendida como aquela contínua operação do poder de Deus, pela qual Ele sustenta e mantém todas as coisas contingentes – a Criação –, a fim de que esta possa cumprir ordenadamente o propósito para a qual foi criada. Isto significa que a Criação de Deus não tem poder em si mesma para auto-existir; sem a sustentação de Deus o universo inteiro, toda criação deixaria de existir. “Ele, que é o resplendor da glória e a expressão exata do seu ser, sustentando todas as cousas pela palavra do seu poder...” (Hb 1.3). A idéia de “sustentação” no texto, fe/rw = “levar”, “carregar”), além de preservação, é a de fazer com que as coisas sigam o seu rumo, o seu propósito determinado por Deus;“encerra a idéia de controle ativo e deliberado da coisa que se carrega de um lugar a outro”. Sem a preservação de Deus nada mais existiria; tudo teria voltado ao nada. Por isso, podemos afirmar sem nenhum constrangimento, que até mesmo Satanás e os seus anjos, são alvos da bondade mantenedora de Deus; sem a sustentação divina, eles voltariam ao nada, que é a ausência do ser. Isto nos conduz à nossa responsabilidade como agentes de Deus no cuidado e preservação do que Ele mesmo nos confiou. A natureza tem o seu valor porque foi criada por Deus. Eu não preciso idealizar a natureza, humanizá-la ou divinizá-la; ela tem o seu próprio valor: O Deus sábio, soberano e bondoso a criou. Isto, por si só nos basta.
O pecado, que consiste na quebra de relacionamento com Deus, trouxe ao ser humano diversas consequências. Entre elas a perda da sensibilidade espiritual. O ser humano perdeu a capacidade de reconhecer a Deus em Seus atos manifestos em toda a Criação, na Palavra e, plenamente revelado em Cristo Jesus. A quebra desta comunhão com Deus vai interferir diretamente em todas as demais relações, inclusive em nossa maneira de ver e atuar no mundo. O pecado alienou-nos de Deus, do nosso semelhante e da natureza.Assim, o pecado, de certa forma, desumanizou-nos. A Queda trouxe consequências desastrosas à imagem de Deus refletida no homem. Após a queda, mesmo o homem não regenerado continua sendo imagem e semelhança de Deus (aspecto metafísico): Apesar de o pecado ter sido devastador para o homem, Deus não apagou a sua “imagem”, ainda que a tenha corrompida,alienando-o de Deus. O pecado trouxe como implicação a perda do aspecto ético da imagem de Deus.A nossa vontade, como agente de nosso intelecto,agora, é oposta à vontade de Deus: “Observemos aqui que a vontade humana é em todos os aspectos oposta à vontade divina, pois assim como há uma grande diferença entre nós e Deus, também deve haver entre a depravação e a retidão”.A imagem que agora refletimos estampa mais propriamente o caráter de Satanás.
No Éden só havia um livro: o livro da natureza; todavia, com o pecado humano, a natureza também sofreu as consequências, ficando obscurecida, perdendo parte da sua eloquência primeva em apontar para o Seu Criador (Gn 3.17-19)e, como parte do castigo pelo pecado, o homem perdeu o discernimento espiritual para poder ver a glória de Deus manifesta na Criação (Sl 19.1; Rm 1.18-23). A Revelação Geral que fora adequada para as necessidades do homem no Éden – embora saibamos que ali também se deu a Revelação Especial (Gn 2.15-17,19,22; 3.8ss) –, tornou-se, agora, incompleta e ineficientepara conduzir o homem a um relacionamento pessoal e consciente com Deus. A observação de Calvino (1509-1564) parece-nos importante aqui: "Lembremo-nos de que nossa ruína se deve imputar à depravação de nossa natureza, não à natureza em si, em sua condição original, para que não lhe lancemos a acusação contra o próprio Deus, autor dessa natureza”. Todavia, mesmo a Criação sendo obscurecida pelo pecado humano, continua a revelar aspectos da natureza e do caráter de Deus.Como escreveu Calvino:
“Assim é que Deus tem estabelecido por toda parte, em todos os lugares, em todas as coisas, suas insígnias e provas, às vezes em brasões de tal nítido entendimento que ninguém pudesse alegar ignorância por não conhecer um tal soberano Senhor que tão amplamente havia exaltado sua magnificência. É quando, em todas as partes do mundo, no céu e na terra, Ele escreveu e praticamente gravou a glória de Seu poder, Sua bondade,sabedoria e eternidade”. A fé cristã fundamenta-se, porque foi por isso que ela se tornou possível, na existência de um Deus transcendente e pessoal que se revela, se comunica conosco. Sem a comunicação divina não haveria teísmo nem ateísmo, simplesmente jamais chegaríamos ao conceito de Deus ou à sua negação.